Metaidentidade e o fim da morte

A compreensão de identidade dos indivíduos está sendo completamente modificada na era da informação, ocupamos diferentes espaços públicos de maneira simultânea e instantânea, apoiados por mecanismos tecnológicos que permitem uma fragmentação das relações. Nas últimas décadas a presença na internet estimulou o estabelecimento de perfis sociais, criando identidades digitais em diferentes plataformas como as redes sociais, a partir desse movimento estabelecemos uma representação individual em diferentes ambientes, reais e virtuais, amplificando assim o conceito de presença individual. Com a evolução desses recursos, adicionado ao surgimento de tecnologias de realidade virtual como metaverso, o conceito de representação individual está deixando de ser uma personalidade social para se aproximar cada vez mais de um verdadeiro espelhamento da identidade do indivíduo, essa metaidentidade tem potencial para transcender a representação humana, no espaço e no tempo. 

Essa evolução interrompe abruptamente as definições anteriores sobre identidade. O filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), tratou a questão através de uma abordagem lógica e matemática e definiu que cada indivíduo é constituído por qualidades intrínsecas, o que o torna distinguível na multiplicidade [1]. Ele ainda afirmou que caso algum indivíduo compartilhe de semelhança e igualdade com outro, estaríamos na verdade nos referindo ao mesmo ente, identificado por tal relação. Os princípios que Leibniz destaca para essa afirmação são os de "distinção" e "individualização", respectivamente. Através da "Lei de Leibniz" surge a "identidade dos indiscerníveis", onde a identidade própria de um ente consigo mesmo não será observada em outros com a mesma totalidade de propriedades. 

Mas, em 1991, David Gelernter começa a desconstruir esse argumento de Leibniz ao escrever sobre a teoria de Gêmeos Digitais [2], ou Digital Twins, no livro Mirror Worlds, propondo que dois objetos podem ser idênticos entre si, sem necessariamente serem os mesmos em si. Esse conceito surge como uma prática da engenharia, e rapidamente se difunde na área de manufatura, impulsionado pela aceleração tecnológica e utilização de recursos avançados de software para tal aplicação. Essa solução é adotada para melhorar o gerenciamento do ciclo de vida de produtos [3], através da reprodução de elementos idênticos que permitem simulação de hipóteses sem necessariamente a exposição do produto no mundo real. Esses gêmeos digitais se destinam a ser uma cópia atualizada e precisa das propriedades e estado do objeto físico, incluindo forma, posição, gesto, status e movimento, e porque não utilizá-lo também para reprodução de perfis humanos em uma realidade virtual. 

David Gelernter previu em sua obra o surgimento de "universos-espelho", algo que se aproxima muito daquilo que está sendo rotulado de metaverso. Esses ambientes de realidade virtual foram desenvolvidos para serem uma nova dimensão da vida humana, construída com recursos avançados da tecnologia da informação como ciência de dados, aprendizado de máquina e inteligência artificial, com possibilidade de contínua alimentação por dados para sua própria evolução. Essa nova dimensão está sendo ocupada por gêmeos digitais do mundo físico, com a reprodução de locais populares, objetos que as pessoas estão habituadas, e entidades, tanto como representações de identidades de indivíduos reais que estão sendo "espelhados" nesses ambientes, como de identidades inéditas artificiais. As entidades artificiais, que podem ter semelhanças com humanos e aparências inéditas, são comandadas por inteligência artificial, e ocupam os espaços virtuais com autonomia suficiente para não serem distinguidas de humanos. Será muito difícil perceber se tais entidades artificiais estão representando a identidade de seres vivos reais ou apenas foram criadas a partir de propriedades para serem imagem, semelhança e comportamento semelhantes de outros humanos. Os gêmeos digitais, que podem ser gerados a partir da identidade de indivíduos reais, recebem instruções e aprendem continuamente a partir de suas versões originais. Em algum momento, com o grande poder de processamento computacional, rápida evolução das técnicas de aprendizado de máquina e redes neurais, essas identidades virtuais poderão assumir uma fidedigna representação da identidade de seus criadores, amplificando assim o conceito de identidade. Se tais identidades forem continuamente aperfeiçoadas no ambiente de realidade virtual, será preciso revisitar a teoria de Platão sobre os objetos do mundo real que seriam apenas cópias imperfeitas do seu verdadeiro ser no reino espiritual, pois em uma versão atual dessa teoria, os indivíduos do mundo real poderiam ser considerados cópias imperfeitas dos mesmos no reino virtual.

Uma característica adicional dos gêmeos digitais, é que vivem simultaneamente no ambiente físico e espaços virtuais, amplificando suas vivências de mundo, mesmo quando oriundos de uma mesma identidade, ou seja, representando o mesmo indivíduo. Essa metaidentidade, definição adotada pois a identidade transcende o espaço ao superar o ambiente físico, também será possível transcender o tempo, já que ambos estarão vivendo ativamente em universos paralelos. Diferente da transposição que ocorre com a identidade nas redes sociais, onde a representação depende fundamentalmente da ação do indivíduo quando opera aquela identidade virtual, o ambiente do metaverso permite a autonomia da identidade clonada, ou seja, ela pode permanecer ativa no modo automático, sem necessariamente um operador humano ativo. Um exemplo que ajuda a explicar como isso acontece é o funcionamento autônomo de personagens em jogos virtuais, eles funcionam a partir de  instruções originais, e posteriormente podem atuar de forma independente, sem necessariamente a presença de um operador ativo. 

O potencial desses recursos amplificados pelo poder da tecnologia e da informação, retroalimentado por fluxos contínuos de dados, põe em debate a definição de Leibniz quanto a questão indiscernível da identidade, já que "distinção" e "individualização" podem ser reproduzidos através dos atuais recursos artificiais, onde autônomos representam uma identidade e podem reproduzir um comportamento originalmente configurado. Existem muitas implicações e reflexões necessárias com relação a metaidentidade, sejam sobre o fluxo de transferência de personalidade, o processo de compartilhamento de conhecimento, a capacidade e velocidade de aprendizado desses sistemas, o tempo para atingir autonomia, as responsabilidades atribuídas às entidades, os limites éticos dos dados inseridos, responsabilidade sobre o armazenamento de informações por parte das plataformas, mas talvez aquele mais inquietante esteja relacionado com a morte da versão original, ou seja, quando aquele indivíduo que emprestou sua identidade para o gêmeo digital não estiver mais entre os seres vivos. Nesse caso, teremos a permanência apenas da entidade autônoma representando a identidade real, de forma totalmente independente em uma realidade virtual. Atualmente ocorre algo semelhante com indivíduos que ao morrer deixam seus perfis ativos nas redes sociais, esses, em  muitos casos, continuam recebendo interações de outras pessoas que não sabem da morte daquele indivíduo, mantendo ativa a representação da identidade mesmo após a morte. Quando em um ambiente completamente sustentado por recursos tecnológicos como a realidade virtual, que permite a permanência dessa entidade ativa, artificialmente inteligente e interativa, tal identidade do indivíduo original poderá permanecer viva, mesmo após seu desligamento da experiência física. 

Esse ensaio é o prenúncio para uma profunda reflexão e debate sobre a metaidentidade,  suas implicações em conceitos previamente estabelecidos, onde torna-se necessária a revisão do conhecimento sobre identidade, em razão da revolução que a tecnologia da informação está causando na humanidade. Máquinas potentes, com capacidade ilimitada de coleta de dados e processamento ultra rápido, que utilizam-se de recursos avançados para aprender, e rapidamente se auto aperfeiçoam, estão colocando em questão a própria identidade dos indivíduos, gerando uma grande mudança na forma de funcionamento da sociedade.

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Referências

[1] LEIBNIZ, G.W., Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, 1765.

[2] GELERNTER, David Hillel (1991). Mirror Worlds: or the Day Software Puts the Universe in a Shoebox—How It Will Happen and What It Will Mean. Oxford; New York: Oxford University Press. ISBN 978-0195079067. OCLC 23868481 

[3] «Siemens and General Electric gear up for the internet of things». The Economist. That technology allows manufacturers to create what David Gelernter, a pioneering computer scientist at Yale University, over two decades ago imagined as 'mirror worlds'.